JEREMY SCAHILL
Quase dez mil “inimigos” de
Washington já foram mortos por meio de drones. Como são escolhidos os alvos.
Qual o papel de Obama. Por que tantos civis são liquidados “por engano”
Por Jeremy Scahill
–
O texto a seguir é um excerto do
novo livro The Assassination Complex, de Jeremy Scahill & equipe do The
Intercept (Simon & Schuster, 2016), que será publicado no Brasil pela Autonomia Literária, editora parceira de Outras Palavras.
Desde seus primeiros dias como
comandante em chefe, o presidente Barack Obama fez do drone sua arma preferida,
usada pelos militares e pela CIA para perseguir e matar as pessoas que seu
governo considerou – por meio de processos secretos, sem acusação ou julgamento
– merecedores de execução. A opinião pública tem colocado foco na tecnologia do
assassinato remoto, mas isso tem servido frequentemente para evitar que se
examine em profundidade algo muito mais crucial: o poder do Estado sobre a vida
e a morte das pessoas.
Os drones são uma ferramenta, não
uma política. A política é de assassínio. Embora todos os presidentes
norte-americanos, desde Gerald Ford, mantivessem uma norma executiva que bania
assassinatos por funcionários dos EUA, o Congresso evitou legislar sobre esse
assunto ou até definir a palavra “assassinato”. Isto permitiu que os
proponentes de guerras por meio de drones renomeassem assassinatos
[assassinations] com adjetivos mais palatáveis, como o termo da moda, “mortes
seletivas” [targeted killings].
Quando discutiu publicamente os
ataques por drones, o governo Obama ofereceu garantias de que tais operações
seriam uma alternativa mais precisa do que soldados em combate. A autorização
para executá-las seria dada apenas quando há uma ameaça “iminente” e “quase
certeza” de que se eliminará o alvo planejado. As palavras, contudo, parecem
ter sido redefinidas para não guardar quase nenhuma semelhança com seus
significados comuns.
O primeiro ataque de drone fora
de uma zona declarada de guerra foi realizado em 2002, mas só em maio de 2013 a
Casa Branca divulgoupadrões e comportamentos para a condução desses ataques.
Eram orientações pouco específicas. Afirmavam que os Estados Unidos somente
conduziriam um ataque letal fora de uma “área de hostilidades ativas” se um
alvo representasse uma “ameaça iminente e contínua para pessoas dos EUA”. Nada
informava sobre o processo interno usado para determinar se um suspeito podia
ser morto, sem processo ou julgamento. A mensagem implícita do governo Obama
sobre ataques de drones tem sido: Confie, mas não verifique.
Em 15 de outubro de 2015, o site
The Intercept publicou um conjunto de slides secretos que abriram uma janela
para os trabalhos internos das operações militares dos EUA para
assassinato/captura durante um período-chave na evolução das guerras por drone:
entre 2011 e 2013. Os documentos, que também traçam a visão interna das forças
especiais de operação sobre as deficiências e erros do programa de drones,
foram fornecidas por uma fonte de dentro da comunidade de inteligência, que
trabalhava nos tipos de operação e programas descritos nos slides. Garantimos o
anonimato da fonte porque os materiais são sigilosos e porque o governo dos EUA
está engajado numa perseguição agressiva contra quem denuncia suas irregularidades
— os whistleblowers. Iremos nos referir a essa pessoa simplesmente como “a
fonte”.
A fonte disse que decidiu revelar
os documentos porque acredita que o público tem direito de entender o processo
pelo qual as pessoas são colocadas em listas de condenados à morte e depois
assassinadas, por ordem dos mais altos escalões do governo dos EUA. “Essa
ultrajante obsessão de criar listas de vigilância, de monitorar as pessoas e
relacioná-las, atribuindo-lhes números, cartões com retratos e sentenças de
morte sem aviso, num campo de batalha que abrange o mundo inteiro, foi errada
desde o primeiro momento”.
“Estamos permitindo que isso
aconteça. E por ‘nós’ quero dizer todo cidadão norte-americano que agora tem
acesso a essa informação, mas continua a não fazer nada a respeito.”
Estas são as revelações-chave
expostas pelo The Intercept.
Como o presidente autoriza os
assassinatos
Tem sido amplamente divulgado que
o presidente Obama aprova diretamente a inclusão, nas listas de assassinato, de
alvos de alta relevância. O estudo secreto ISR oferece uma nova visão da cadeia
de assassinato, incluindo um mapa detalhado, que vai da obtenção de dados por
meios eletrônicos e humanos até a mesa do presidente. No mesmo mês em que o
estudo ISR circulou, maio de 2013, Obama assinou a orientação política sobre o
uso de força em operações de contraterrorismo no exterior. Um alto funcionário
do governo, que não quis comentar sobre os documentos sigilosos, admite que
“aquelas diretrizes permanecem em vigor hoje”.
As equipes de inteligência dos
EUA coletam informações sobre alvos potenciais obtidas a partir de “listas de
observação” e do trabalho das agências de inteligência, militares e policiais.
Na época do estudo do ISR, quando alguém era colocado na lista de mortes,
analistas de inteligência criavam um retrato do suspeito e da ameaça que aquela
pessoa significava, juntando-os “num formato condensado conhecido como baseball
card [semelhante a uma figurinha de um álbum de jogadores de futebol, numa
aproximação cultural como o Brasil (Nota da Tradução)]. As informações eram em
seguida articuladas, junto com dados operacionais, numa “ficha informativa
sobre o alvo” a ser “enviada para escalões mais altos” para ação. Na média,
indica um dos slides, demorava cinquenta e oito dias para o presidente
assinalar um alvo. A partir daquele momento, as forças norte-americanas tinham
sessenta dias para executar o ataque. Os documentos incluem dois estudos de
caso que são parcialmente baseados em informação detalhada nos baseball cards.
O sistema para criar baseball
cards e pacotes de alvos depende muito, de acordo com a fonte, de interceptação
da inteligência e de um sistema de muitas camadas de interpretação humana
sujeita a erros. “Não é um método infalível”, diz ele. “Você se baseia no fato
de que tem todas essas máquinas muito poderosas, capazes de coletar quantidades
extraordinárias de dados e informação”, que podem levar o pessoal envolvido em
definir os alvos dos assassinatos a acreditar que tem “poderes tipo divinos”.
Assassinatos baseiam-se em
informção não-confiável e coletada de modo fragmentado
Em zonas de guerra não-declarada,
os militares dos EUA tornaram-se excessivamente confiantes nos sinais de
inteligência, ou SIGINT, para identificar e em seguida caçar e matar as pessoas.
O documento confirma que usar metadados de telefones e computadores, assim como
interceptações de comunicação, é um método inferior de encontrar e acabar com
pessoas marcadas. Eles descrevem a capacidade do SIGINT nesses campos de
batalha não convencionais como “ruins” e “limitados”. Apesar disso, tais
coletas, boa parte delas fornecidas por parceiros estrangeiros, responderam por
mais de metade das informações usadas para rastrear assassinatos potenciais no
Iêmen e na Somália.
A fonte descreveu como membros da
comunidade de operações especiais veem as pessoas que estão sendo caçadas pelos
Estados Unidos para possível morte por ataque de drone: “Eles não têm direitos.
Eles não têm dignidade. Eles não têm humanidade. Eles são apenas um ‘seletor’
para um analista. Ao final você chega a um ponto no ciclo de vida dos alvos em
que, durante a perseguição, você sequer se refere a eles por seu nome de
verdade.” Essa prática, diz ele, contribui para “desumanizar as pessoas antes
mesmo de se colocar diante da questão moral sobre se ‘esse assassinato é
legítimo ou não?’”
Os ataques frequentemente matam
muito mais do que o alvo escolhido
A Casa Branca e o Pentágono
alardeiam que o programa para morte de alvos é preciso e o número de vítimas civis
é mínimo. Contudo, os documentos que detalham uma campanha de operações
especiais no nordeste do Afeganistão, a Operação Haymaker, mostra que, entre
janeiro de 2012 e fevereiro de 2013, os ataques aéreos das operações especiais
mataram mais de duzentas pessoas. Destas, apenas 35 eram alvos. Durante um
período de quatro meses e meio da operação, conforme os documentos, cerca de
90% das pessoas assassinadas em ataques aéreos não eram os alvos pretendidos.
No Iêmen e na Somália, onde os Estados Unidos têm capacidade de inteligência
muito mais limitada para confirmar que as pessoas mortas são os alvos
pretendidos, as proporções podem ser muito piores.
“Qualquer pessoa que se encontre
nas proximidades é culpada por associação”, disse a fonte. “[Quando] um ataque
de drone mata mais do que uma pessoa, não há garantia de que aquelas pessoas
mereciam esse destino… é um risco enorme”
Militares rotulam as pessoas
desconhecidas que assassinam de “inimigos mortos em ação”
Os documentos mostram que os
militares designam as pessoas que matam em ataques com alvos como EKIA,
“inimigo morto em ação” (“enemy killed in action”), mesmo que elas não sejam os
alvos pretendidos no ataque. A menos que surjam evidências póstumas para provar
que homens mortos não são terroristas ou “combatentes inimigos fora da lei”,
sua designação permanece como EKIA, conforme a fonte. Esse processo, diz ele,
“é insano. Mas nós demos um jeito de nos sentir confortáveis com ele. A
comunidade de inteligência, JSOC, a CIA e todos que ajudam a apoiar e sustentar
esses programas estão confortáveis com essa ideia.” A fonte descreve afirmações
de funcionários do governo dos EUA minimizando o número de perdas infringidas
por ataques de drone como “no mínimo exageradas, se não
Tradução: Inês Castilho
Fonte PCB
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